Análise (sem spoilers) – The Last of Us Part II é uma experiência única

26 de setembro de 2020 0 Por Allan Lima

The Last of Us part II se tornou uma das sequências mais aguardadas da geração, desde que foi anunciada. Isso se deve ao enorme sucesso que seu antecessor alcançou, entregando uma narrativa densa e adulta, combinado com um gameplay sem grandes inovações à época, mas extremamente competente em tudo que se propunha. Na análise anterior (que você pode conferir aqui), focamos na história que o jogo apresentou (com spoilers), e agora apresentaremos uma análise abrangendo todos os aspectos do game (sem spoilers).

The Last of Us part II é uma evolução natural, com adições pontuais que mudam a dinâmica do jogo e o torna uma experiência imersiva e indispensável para qualquer amante dos videogames. O jogo traz temas pesados em sua história, que refletem direta ou indiretamente no clima que permeia seu gameplay, fazendo com o que o jogador perca o fôlego diante de um ritmo frenético de acontecimentos dentro e fora do controle do jogador. 

Uma história densa  

Cerca de 5 anos se passaram desde o fim de The Last of Us, Ellie agora já é praticamente uma mulher adulta e juntamente com um Joel mais velho e sereno, vivem tranquilamente na comunidade de Jackson, que Tommy e sua mulher Maria construíram. Tudo segue bem até que um trágico acontecimento coloca Ellie numa jornada de Vingança, que a transforma e muda completamente o rumo de sua vida. 

É difícil falar da história de The Last of Us Part II sem acabar pisando em terreno de spoiler, mas posso dizer que a história que Neil Druckman entrega traz muito mais do que uma simples narrativa de vingança, é uma história que nos mostra as nuances que o comportamento humano carrega; uma história sobre amor, ódio e um convite à questionar nossa própria natureza moral, tudo isso através de acontecimentos que nos ligam diretamente aos acontecimentos do primeiro game. Talvez você tenha se desencorajado a conhecer o jogo diante dos Spoilers que correram a internet, ou mesmo diante da polêmica que ronda esse aspecto do game, mas te convido à dar uma chance e abrir a mente para uma das melhores e mais densas histórias já contada em um jogo. 

Violento e Visceral 

Já era sabido desde os anúncios, entrevistas e promoções do jogo, que The Last of Us Part II seria violento – muito mais que seu antecessor – e que um dos objetivos era infligir culpa ao jogador, fazendo-o se sentir mal por matar durante o game. A Naughty Dog consegue não só cumprir seu objetivo, como também trazer uma dinâmica diferente em relação aos inimigos e as consequências das interações com os mesmos. 

Normalmente, enxergamos os inimigos nos jogos apenas como meros obstáculos, como números a serem acumulados em suas estatísticas de matança. Isso se dá muito pelo comportamento “vazio” dado aos inimigos comuns da maioria dos jogos – e aqui nem me refiro à Inteligências artificial, padrões de ataque, e sim à profundidade e identidade. Em The Last Of Us Part II, os inimigos ganharam nomes, amigos, reações e emoções bem elaboradas, e isso na prática faz com que tenhamos a sensação de realmente estar matando um ser humano, de realmente estar cometendo um ato pesado, afastando-se da trivialidade que tínhamos até então. Para realizar esse feito, a Naughty Dog faz uso de fidelidade gráfica, expressões faciais ingame impressionantes e uma programação de comportamento orgânica. 

Podemos identificar através das expressões faciais de Ellie seu constante ódio e determinação ao brandir uma arma branca, agarrar um inimigo, se esquivar, etc. Quando, por exemplo, Ellie agarra por trás um inimigo com uma faca em seu pescoço, podemos ver claramente a expressão de susto na cara do inimigo, seguido por raiva ou medo e, quando finalmente enfiamos a faca no pescoço, a vida vai se esvaindo e a expressão ficando morta, em uma demonstração de realismo impressionante. Os sons e diálogos complementam a veracidade das ações, com os inimigos implorando, barganhando, ou simplesmente com a voz trêmula de medo, seguido pelo engasgo com o próprio sangue quando Ellie finaliza o serviço. 

Quando algum outro inimigo descobre o corpo, vemos reações diversas, como choro ou raiva, seguido sempre de um grito com o nome da pessoa morta, ou algum tipo de reação típica do choque que aquela situação causa. Temos também os cachorros que agora aparecem como fieis companheiros do grupo chamado “WLF” (Washington Liberation Front), e estes também possuem reações à morte de seu dono, assim como também ocorre o contrário. Ao chegar em um ambiente aonde você encontra um inimigo fazendo carinho em um cão, ou até mesmo em uma conversa trivial entre dois amigos, você deixa de sentir que está matando um amontoado de polígonos e passa a sentir que está matando um ser humano com uma vida tão complexa quanto a da própria Ellie. Como não se sentir mal ao ver um cãozinho tentando fazer o corpo do dono se mexer? Como não hesitar em matar um cão, e ouvir seu grunhido final enquanto cai?  

Nem todos, claro, irão se sensibilizar ou se deixar levarem por isso, mas com certeza algum efeito terá, mesmo que seja uma mera expressão de apreço pelo minucioso trabalho da produtora. É um recurso pequeno diante de uma série de fatores que compõe o jogo, mas ao mesmo tempo acaba sendo grandioso no que tange a imersão, afinal, quando damos significado a algo, tudo se transforma. Chutar uma bola de futebol a princípio é só isso, o ato de dar um chute em um objeto inanimado; porém, quando adicionamos regras, plateia e outros recursos, aquilo ganha uma profundidade capaz de tornar um espetáculo que entretém milhares de pessoas.  

Gráficos que fecham a geração com chave de ouro 

À medida que o fim da geração se aproxima, chegamos a um ponto onde gráficos dificilmente surpreendem muito, afinal a essa altura os consoles já estão relativamente defasados em termos de Hardware e os desenvolvedores já utilizaram o seu máximo. The Last of Us part II contudo, apresenta gráficos espetaculares, mostrando do que é capaz um grande orçamento aliado a um estúdio talentoso. 

Os modelos dos personagens são muito realistas, seguindo o mesmo padrão de qualidade visto em Uncharted 4, sendo até superior em alguns pontos. O envelhecimento dos personagens foi muito bem construído, sendo possível ver as rugas no rosto de Joel, os fios de cabelo branco, os traços de mulher em uma Ellie agora no início da vida adulta, entre outros detalhes que tornam os personagens críveis, sem perder a identidade visual que foi moldada no primeiro. Os infectados não ficam atrás e ganharam novos modelos, muito mais detalhados e assustadores, tudo isso com texturas impecáveis. 

Os cenários são o grande destaque, sendo estes uma combinação de beleza técnica com direção de arte impecável, resultando em um mundo pós apocalíptico poucas vezes visto nesse tipo de mídia. The Last of Us Part II consegue exibir uma beleza singular em um cenário de desolação e morte, com a vegetação forçando sua presença por entre os edifícios abandonados, inundações tomando alguns locais, neve responsiva ao ambiente e o clima que impacta diretamente sobre o visual da bela Seattle.  

Os interiores são extremamente detalhados, com objetos colocados cuidadosamente em cada ponto de forma a dar um aspecto natural de um local que costumava ter vida normal, mas agora está abandonado. Além disso, cada ambiente é único, praticamente não havendo repetição durante todo o jogo, o que torna esses alcances técnicos ainda mais impressionantes. A iluminação do jogo funciona perfeitamente e dá o toque final no ambiente, tornando-o ainda mais bonito. No escuro, ao usar a lanterna, a luz reage não só ao local que você aponta, mas também às partículas do ambiente como poeira ou esporos dos infectados, dando um efeito impressionante nos muitos ambientes escuros do game. 

Atenção aos detalhes e aos movimentos 

Além do visual impecável, as animações de The Last of Us part II são igualmente bem feitas. Cada movimento é perfeitamente animado, desde ações básicas como mirar e atirar, até o ato de pegar uma flecha no corpo de um inimigo, tudo isso sem prejudicar o ritmo do jogo. À medida que jogamos o game, detalhes saltam aos olhos, como o movimento da mochila de Ellie ao andarmos; as posições de seus dedos quando toca violão, formando acordes iguais à vida real; a forma que a neve reage a seus passos ou influencia a expressão do personagem; o sangue respingando na roupa e no rosto de Ellie, entre tantos outros, que tranquilamente renderia um texto apenas listando-os. Tudo isso vai além de um showcase técnico, ele é uma parte do todo que compõe a experiência e tem um papel importante na interatividade com o cenário e, por consequência, na exploração que é parte fundamental do game. 

Liberdade e exploração 

No primeiro The Last of Us, um dos focos de gameplay era a sobrevivência e a exploração, tendo o jogador que explorar todo o cenário em busca de suprimentos para se manter durante a jornada, e embora os cenários permitissem essa exploração, no geral o jogo se limitava em algo mais linear e horizontal. Isso muda em sua sequência, onde agora temos um cenário muito mais amplo e cheio de possibilidades, com vários momentos onde podemos explorar à vontade sem necessariamente estar indo em direção ao objetivo principal. A construção desse sistema em alguns momentos lembra um pouco o que foi feito em God of War, ainda que de maneira mais discreta. Logo nos momentos iniciais do game chegamos a um ponto aonde podemos explorar livremente dezenas de edifícios pelas ruas de Seattle, em uma área consideravelmente grande, onde Ellie usa até um mapa para não se perder à medida que avança. Além disso, agora temos a possibilidade de subir em diversos objetos do cenário, além de poder também rastejar e passar por lugares estreitos, o que aumenta consideravelmente a variedade de caminhos a se seguir, seja para ir até seu objetivo ou para encontrar itens em uma sala opcional. 

Os puzzles do jogo continuam simples, mas melhoraram consideravelmente em relação ao que seu antecessor trazia. Aqui eles possuem uma complexidade maior, alguns exigindo até um certo nível de backtracking e exploração, dando uma cadência necessária aos momentos de ação. Há sempre um incentivo a se explorar e os cenários são a todo momento integrados a exploração e à ação, especialmente nos puzzles. Não é raro ter que observar com atenção tudo à sua volta para achar um caminho alternativo à uma porta trancada, muitas vezes envolvendo o uso de uma corda encontrada no local (que faz uso de uma física extremamente apurada), outras vezes tendo simplesmente que quebrar alguma janela ou subir em algum lugar. No final das contas, a interatividade com o cenário e o level design formam um ambiente convidativo à exploração, e se você estiver jogando nos níveis mais altos de dificuldade, a recompensa de explorar tudo com cuidado é muito gratificante, formando uma reação em cadeia que acaba por tornar algo opcional parte fundamental da experiência. 

Jogabilidade fluída e real 

Os jogos dito “cinematográficos” hoje ganham esse apelido por possuírem um feeling hollywoodiano em sua história e até em seu gameplay, sendo este último normalmente limitado à pouca interatividade ou liberdade em momentos do tipo. Não raro vemos trailers com gameplay que passam esse feeling de filme, mas que normalmente usam de script para fins de marketing, mostrando uma fluidez que dificilmente é possível reproduzir durante o jogo final. Durante meu tempo com The Last of Us part II, eu tive o tempo todo justamente a sensação de estar jogando algo cinematográfico em termos de gameplay, mas sem estar preso a esse script, pois há uma série de fatores que tornam os momentos de ação do jogo algo natural, imprevisível e empolgante. 

Todo tipo de ação no jogo ficou extremamente fluída, da corrida ao pulo, tudo se executa de forma suave e isso reflete nos momentos em que você precisa tomar ações rápidas como fugir ou lutar. Com Ellie ganhamos a possibilidade de se esquivar de ataques, e por consequência os combates corpo a corpo se tornam mais dinâmicos, podendo se integrar a uma fuga ou alguma outra ação necessária em meio ao caos que se instala quando você é visto. The Last of Us part II é um jogo de escolhas e constante improviso, especialmente nas dificuldades mais altas; é preciso saber quando usar seus escassos recursos e quando simplesmente passar desapercebido. Até onde vale à pena se arriscar entre os estaladores para explorar aquela sala? Vale à pena matá-los gastando munição e arriscando seu pescoço em troca de abrir aquele cofre? E se você foi visto em meio a um grande acampamento inimigo sem ter recursos para enfrentá-los, como vai escapar da situação? 

Indiretamente o jogo joga essas questões ao jogador, impondo uma sensação de estar em constante perigo, de estar constantemente sendo testado nas perigosas ruas de Seattle. A inteligência artificial foi brutalmente melhorada em relação ao primeiro jogo, e agora não é tão fácil enganar os inimigos utilizando os elementos de furtividade, mesmo estes tendo ganhado novas formas de abordagem. Você pode se rastejar, se esconder embaixo de carros e grama alta, passar por entre frestas e aberturas na parede, além de ganhar muito em agilidade jogando com a Ellie; por outro lado, os inimigos agora estão muito mais atentos, com padrões de guarda mais imprevisíveis, comunicação muito mais efetiva, e ao menor sinal de barulho ou algo suspeito os inimigos se comunicam e quase sempre vão em dupla investigar o local, cercando-o, virando repentinamente os corredores e olhando aos arredores. Isso tudo aumenta a dificuldade em surpreender inimigos ou sequer atraí-los sem ser visto, contribuindo para uma atmosfera mais tensa ao tentar passar pelos locais em direção ao seu objetivo. 

Os infectados continuam perigosos como sempre foram, e são presença constante e muitas vezes inesperada. Há agora um novo padrão de som que os estaladores emitem para localizar o jogador, bem como novos tipos de infectados, aumentando a variedade de encontros e situações onde eles estão presentes. No geral, há um toque muito mais forte de terror nessa sequência, e o contexto aonde os infectados são inseridos contribui para isso.

Para sobreviver, à disposição do jogador há uma boa variedade de armas, desde pistolas à rifles semiautomáticos, e o retorno do arco e flecha, que agora está muito mais prazeroso de se utilizar. As melhorias das armas permanecem, com mais variedade de modificações e alterações visuais interessantes (aqui vale ressaltar como é satisfatório ver a Ellie modificando cada ponto da arma). Além disso, há uma espécie de árvore de habilidades divididos em categorias como precisão, furtividade, explosivos, entre outros que são desbloqueados à medida que você explora e encontra novos manuais de treinamento. Na prática isso adiciona um toque estratégico e coloca sob a escolha do jogador qual estilo de jogo prefere utilizar, e as melhorias e ganhos de habilidade dão versatilidade às possíveis abordagens e estratégias a se utilizar durante o jogo. 

Esses elementos que compõem o gameplay de The Last of Us part II se fundem à temática pesada do game, formando um dos jogos mais intensos dos últimos tempos. Seu pacing é perfeitamente balanceado, com diálogos bem construídos e momentos de calmaria que permitem a exploração, sendo esta último uma caixinha de surpresas onde você pode voltar a dar de cara com situações extremas a qualquer momento, e onde ao final de cada uma delas seu coração termina acelerado e você se vê parado tomando fôlego junto com a Ellie. A Naughty Dog atingiu um nível de excelência que a coloca como uma das melhores desenvolvedoras no mercado, e mostra que é possível com algum cuidado, tirar leite de pedra de um hardware já considerado defasado neste final de geração. 

O som como elemento fundamental 

A música exerce papel fundamental em The Last of Us Part II, e carrega boa parte de toda carga emocional que o jogo traz ao jogador, com composições de artistas como Pear Jam e a-ha interpretadas de forma impecável pelos atores Troy Baker e Ashley Johnson (dubladores e atores que dão vida à Ellie e Joel). Além disso, a música se faz presente em momentos de gameplay, aonde você pode tocar quase qualquer música em um vilão utilizando o analógico combinado com o touch pad do controle, virando uma espécie de minigame surpreendentemente divertido, inclusive virando hit no youtube com vários players fazendo suas versões de covers dentro do jogo. 

Gustavo Santaolalla volta a compor a trilha sonora do game, mantendo sua identidade musical e característica em suas composições, dessa vez com tons mais tensos e condizentes com a temática do jogo, com algumas músicas soando melancólicas e outras cheias de ação e adrenalina, dando o tom certo a cada momento do jogo. Por último, mas não menos importante, os sons ambientes estão imersivos e realistas, com o sons das armas sendo influenciados por ambientes fechados; estaladores fazendo barulhos aterrorizantes e o som ambiente dando um toque de tensão que permeia todo o jogo. 

The Last of Us part II talvez não seja a sequência que muitos pediram, mas sem dúvida alguma é uma obra-prima que ficará marcada como uma das maiores e melhores produções dessa geração, dona de uma ousadia arriscada mas extremamente necessária na indústria. O jogo é capaz de mexer com os sentimentos do jogador e entregar uma experiência praticamente perfeita em termos de gameplay, narrativa e interatividade; provando mais uma vez que o videogames estão cada vez mais evoluídos como mídia de entretenimento.

Deixe o seu comentário abaixo (via Facebook):