Analisando e entendendo a história de The Last Of Us Part II (com spoilers)
1 de setembro de 2020Falar da história de The Last os Us part II é difícil, não só por toda a polêmica que ela trouxe, mas também por conta de suas nuances. Neil Druckman entrega uma trama arriscada, ousada e competente, quebrando expectativas e tornando-a uma extensão dos temas propostos no primeiro game. Sem dúvida é uma das melhores histórias já contadas na indústria dos games, mas também uma das mais divisivas e uma experiência que pode despertar sentimentos diferentes em cada jogador.
Com o passar dos anos, à medida em que jogos com ênfase na narrativa foram ganhando cada vez mais espaço, suas histórias ganharam ares hollywoodianos, com estrutura, enredo e desenvolvimento de personagens tão complexos quanto qualquer filme proveniente do famoso celeiro de produções cinematográficas. Se antes uma boa história era exigida apenas em jogos de nicho como RPG’s, diante desta crescente evolução e mudança de paradigma, essa exigência passou a fazer parte de praticamente todos os jogos AAA na indústria, tanto quanto quaisquer outros elementos básicos que compõem um jogo. Isso fez com que muitas produtoras começassem a “jogar seguro” ao explorar continuações de suas franquias mais consagradas, preferindo não arriscar, e seguir receitas de bolo cada vez mais conservadoras para com seus personagens e estruturas narrativas, o que definitivamente não é o caso de The Last of Part II.
O primeiro jogo teve uma conclusão que poderia tranquilamente nem ter uma continuação, a história foi perfeitamente fechada e a sua qualidade estabeleceu um patamar difícil de se alcançar, jogando um peso gigantesco no seu sucessor e uma expectativa de igual proporção na cabeça dos fãs, expectativa essa que foi quebrada de forma inesperada e polêmica o suficiente para sacudir a indústria em sua semana de lançamento.
A trama, a história e sua estrutura
Há uma diferença entre trama e história, embora estas andem juntas. A trama é a sequência de fatos que dá suporte a História, esta por sua vez é o conto em si. Para entender melhor coloquemos The Last of Us como exemplo:
The Last of Us conta a história de um pai que perde sua filha; uma história sobre perda, amor, sobrevivência e todo comportamento humano em torno disso. Para contar essa história, temos como trama um apocalipse zumbi, onde Joel perde sua filha e 20 anos depois é encarregado de transportar uma garotinha que é imune, sendo esta a esperança da humanidade.
Como podemos ver, embora a trama do primeiro jogo seja relativamente simples e até clichê, sua história não é, pois trata de temas complexos. O mesmo pode ser dito de sua continuação, cuja história segue temas parecidos, porém com uma trama envolvendo vingança. Então temos duas histórias envolvendo o comportamento humano a cerca, principalmente, da perda de alguém, por isso The Last of Us part II é basicamente uma extensão do primeiro, fazendo jus ao “parte 2” presente no título.
A maior diferença entre os dois está na estrutura dessa história, ou seja, sua narrativa. Tanto o primeiro game quanto a maioria dos jogos, seguem uma estrutura padrão, onde temos 5 elementos:
Apresentação: Uma amostra geral do pano de fundo e informações do que está pra ser contado.
Ação crescente: Os personagens tem um problema e buscam uma solução, esta que normalmente leva a um conflito.
Clímax: Eventualmente a História atinge o seu pico, ao momento de maior tensão.
Ação decrescente: A tensão tem uma baixa e a história começa a mostrar as consequências de seu clímax.
Resolução: O problema apresentado tem uma solução e a história chega a sua conclusão.
Em The Last of Us part 2, a narrativa é construída em 4 diferentes estruturas utilizando-se de diferentes linhas temporais e pontos de vista:
Isso torna a narrativa de The Last of Us Part II complexa pois é um recurso que dá profundidade a uma trama relativamente simples, nos brindando com diferentes perspectivas ante fatos apresentados anteriormente ou posteriormente através de todas as suas linhas do tempo, além de separar o jogo do que vemos como padrão na indústria. Gostar ou não da narrativa e das escolhas do diretor é algo subjetivo, mas definitivamente não dá pra dizer que o Diretor e a Naughty Dog foram acomodados.
Joel e a primeira quebra de expectativa
É impossível falar da história de The Last Of Us sem focar em seu principal elemento, cuja existência e ações ditam todo o desenrolar dos fatos apresentados durante ambos os jogos: Joel.
No primeiro game somos apresentados a Joel Miller, um pai solteiro “gente como a gente”, que trabalha até tarde, se preocupa com as contas de casa e vive o stress diário da vida de um adulto comum, até que a pandemia se dá início culminando na morte de sua filha, Sarah. A definição do personagem em si já foge do clichê de herói que normalmente vemos na indústria, afinal, as características, personalidades e ações de Joel são perfeitamente reconhecíveis e compreensíveis dentro de um contexto real, e essa humanização contribuiu imensamente para que o mesmo se tornasse amado entre os fãs, se tornando um dos personagens mais icônicos da era moderna dos games.
Diante disso, o diretor não seria louco o suficiente de matar um personagem tão icônico e importante para os fãs, ao menos não de forma não-heroica como Joel supostamente mereceria, certo?
Bom… errado. Neil Druckman não só matou o personagem, como o fez de maneira brutal e nem um pouco glamurosa, que configurou a primeira decisão arriscada no roteiro de The Last of Us part II, e a principal razão para a revolta de parte dos fãs. Entender o contexto dessa decisão é fundamental para o entendimento da história como um todo.
Joel nunca foi um herói
A primeira coisa que temos que entender é que Joel não é, e nunca foi um herói, sendo na verdade quase o oposto disso. Os fãs o idealizam como herói por que ele é um sobrevivente, um cara durão que salva a Ellie no final do primeiro. Mas essa é uma visão extremamente limitada do personagem e do próprio jogo, que como vimos procurou sempre deixar claro que aquela não era uma história de sobrevivência, sobre salvar o mundo ou sobre zumbis, e sim sobre nós humanos, e o que nos torna de fato humanos mesmo em um mundo desolado. Joel é o personagem que melhor se encaixa nesse contexto, e sua imperfeição é justamente o que torna ele tão memorável e necessário para esse contexto.
Desde o início, mesmo antes da Pandemia, Joel já se mostrava uma pessoa fechada e desinteressada com a vida, vivendo pra pagar as contas e tendo sua filha Sarah como única motivação. Com a morte da mesma, essas características foram potencializadas, colocando pra fora tudo o que ele havia de negativo dentro de si, tornando-o uma pessoa fria e egoísta cujo único interesse é sobreviver e nada mais. Joel nunca superou o seu luto, preferindo esconder e jogar para debaixo do tapete sua dor, e o relógio (presente de sua filha) em seu pulso é o símbolo máximo de todo o fio condutor de seus sentimentos e ações para com a Ellie, e o mundo a seu redor. Nestes 20 anos que se passaram, Joel dá a entender que fez coisas horríveis junto ao seu irmão Tommy (o qual posteriormente rompe com Joel por conta de uma briga) e isso não é difícil de imaginar, afinal em um mundo como esse, você precisa estar disposto a abandonar parte de sua humanidade se quiser sobreviver, e heróis não são construídos dessa forma.
A questão é: Tudo isso não faz do Joel alguma espécie de anti-herói, ou até mesmo um vilão. Todo esse sentimento que ele carrega, toda essa atitude negativa se dá por circunstâncias em que provavelmente qualquer um de nós iria pirar, onde cada um poderia sair com diferentes marcas, diferentes traumas, afinal você perder sua filha e logo em seguida o mundo se perder, não é uma sequência de eventos fáceis de se lidar. Joel é um personagem humano, e nós humanos temos essa fragilidade que pode nos afundar, mas também temos a nossa volta um sentimento chamado “amor”, capaz de nos transformar; e foi a Ellie que trouxe esse sentimento de volta ao personagem, foi esse amor que o fez agir como agiu no final do primeiro jogo, quando tira a possibilidade de cura da humanidade, matando diversas pessoas (entre eles um que a essa altura vocês conhecem) para salvar essa menina que o fez ganhar um sentido na vida. Independente de suas razões completamente compreensíveis do ponto de vista emocional, não há como negar que seu ato final foi extremamente egoísta, e que provavelmente haveria consequências graves de uma maneira ou de outra.
A mudança e a morte de Joel
Para muitos, Joel foi imprudente e até “burro”, o que não combinaria com o Joel que até então conhecíamos, afinal, ele jamais iria diretamente para uma casa cheia de estranhos e ainda falaria seu nome.
Os eventos que vemos no jogo passam-se 4 ou 5 anos após o primeiro, e esse período de tempo transformou Joel, como o jogo faz questão de mostrar ainda que sutilmente. Logo de cara o vemos tentando uma reaproximação com a Ellie, que parece distante e desinteressada (primeiro fruto de seus atos no final do primeiro) numa quase inversão de papéis do que já ocorreu entre os dois. Agora Joel tenta mais do que nunca assumir o papel de pai que sempre relutou, tendo finalmente feito as pazes com seu passado e tentando abraçar um futuro com Ellie em uma vida normal em Jackson.
Facilmente podemos observar um Joel mais comedido, amoroso, com um tom de voz sempre ameno e às vezes até um pouco cansado. Aos poucos vai-se revelando que ele é agora um membro valioso da comunidade de Jackson, sendo inclusive querido e admirado por todos – incluindo Jessie, um dos amigos de Ellie. Jackson cresceu exponencialmente, tornando-se uma comunidade grande e funcional, com papeis divididos; sistema de trocas e comércio; crianças; festas e quase tudo que uma sociedade normal oferecia no antigo mundo. É importante frisar que não se constrói isso de um dia pro outro e, mais importante ainda, não sem voltar a confiar nas pessoas, não sem voltar a acreditar no ser humano; não é possível restaurar a humanidade sem recuperar a sua própria, e partindo do fato que Jackson foi um projeto liderado por Tommy – a que Joel se juntou posteriormente, não é difícil deduzir que este acompanhou essa mudança de paradigma que Tommy iniciou.
Diante disso, não é difícil entender o motivo de Joel ter salvado uma garota em meio a uma horda de infectados, para além de ser uma questão humanitária, era necessário para que a comunidade continuasse crescendo com potenciais membros. Mesmo que esta não se juntasse a Jackson, poderia ser de algum outro grupo parceiro que teria algo a oferecer. Claro, poderia também ser uma pessoa ruim, mas esse é o tipo de risco que até mesmo nós no conforto de nossa sociedade livre e civilizada, corremos.
Isso me lembra uma frase que li em algum lugar:
“Aonde há vida, há possibilidade”.
As circunstâncias acabam por forçar Joel e Tommy a correr para o Abrigo onde o Grupo de Abby estava, e aí podemos observar duas imprudências:
1- Joel diz seu nome.
Bom, dado todo o passado de Joel, podemos a princípio entender que seria um descuido, mas por outro lado, passaram-se 5 anos sem nenhum incidente envolvendo sua antiga vida, então não seria difícil cometer deslizes do tipo. Mas há também um ponto importante: Tommy já havia revelado o nome dos dois a Abby momentos antes, portanto, seria inútil tentar esconder isso e nada mudaria no desenrolar dos fatos.
2- Tommy revela a localização de Jackson.
Esse é o único erro realmente injustificável partindo de um líder de comunidade em um mundo pós-apocalíptico. Mesmo levando em consideração que eles precisam de mais pessoas para a comunidade, não dá pra simplesmente sair indicando onde há uma comunidade cheia de mantimentos para um grupo desconhecido.
Por outro lado, podemos ver em diálogos e registros, que Jackson não costuma ter problemas com humanos, tendo inclusive negócios com viajantes. A maior parte do esforço para patrulhar e proteger a cidade se dá por conta dos infectados, e isso poderia gerar algum tipo de acomodação, que embora não justifique a falha do Tommy, é mais um indício do comportamento mais brando em relação a outros humanos. De qualquer forma, Abby também já sabia que naqueles arredores havia uma comunidade, portanto isso também não mudaria nada no desenrolar dos fatos.
Após a morte de Joel, já no controle de Ellie temos a oportunidade de visitar seu túmulo e a sua casa, cheia de flores e homenagens, reforçando sua integração com a comunidade, coisa que o antigo Joel jamais seria capaz de fazer. Em sua casa é possível ver que ele havia retomado suas antigas paixões, como a arte e a música, abraçando de vez – ou ao menos tentando – uma vida normal. Vemos uma casa arrumada, um claro contraste com a casa que Joel vivia na zona de quarentena de Boston, e podemos observar que ele havia finalmente conseguido se desvencilhar de seu passado com a Sarah, mantendo o velho relógio em uma caixinha e não mais em seu pulso.
Um contraste a esse aspecto seria o Bill, personagem do primeiro game, uma pessoa que não comete erros, o que garante sua sobrevivência, mas qual o preço a se pagar? Bill vive uma vida digna? Uma vida que vale à pena ser vivida? Sozinho, sem amigos, sem propósito nenhum além de meramente sobreviver e garantir a segurança de uma cidade fantasma onde ele é o único habitante solitário.
Joel certamente não teve a morte heroica que todos esperávamos, mas certamente viveu uma vida digna em seus últimos anos, ganhando algo que há muito havia sido perdido: Sua humanidade. Em seus últimos momentos, Joel encarou seu destino de cabeça erguida, com a coragem que sempre teve, talvez um último ato de respeito para com o personagem.
Ellie e a sede de vingança
A morte de Joel como ela foi, tem como objetivo por parte dos criadores de chocar o jogador e de nos fazer sentir o que a Ellie sentiu. Se a perda de um personagem tão querido é dolorosa do ponto de vista do jogador, nos coloquemos na pele da Ellie e imaginemos a pessoa mais importante da nossa vida ser brutalmente assassinada diante de nossos olhos, sem chance de defesa, tendo como última lembrança seu olhar perdido e um rosto desfigurado.
É angustiante notar o declínio psicológico da Ellie ao longo de sua jornada de Vingança, declínio esse que é construído com realismo e cuidado ao longo de seu arco. Ellie passa por um turbilhão de emoções causados não só pelo acontecimento traumático, mas também por conflitos internos e eventos que nos são mostrados através de flashbacks, que passo a passo nos faz entender cada vez mais o que se passa na cabeça da adolescente. Às vezes é difícil agir com clareza em meio a raiva, é difícil articular seus pensamentos em meio ao luto e essa complexidade faz parte de nós seres humanos. No final das contas, de um simples trama de vingança, logo The Last of Us Part II passa a construir uma história sobre o comportamento humano e suas nuances, sobre perda, luto, e também sobre amor.
Dina atua como ponto de equilíbrio para Ellie, talvez a única coisa que a separa do completo colapso mental, e é através dela que temos os momentos de calmaria no jogo, momentos esses que conseguem, ainda que por um breve momento, introduzir o amor em meio ao clima pesado que acompanha toda a jornada, trazendo de volta brevemente a Ellie que conhecemos. Mas mesmo o amor de Dina não é capaz de desviar o foco de Ellie, que se mostra cada vez mais cega pelo ódio, e disposta a qualquer coisa para fazer justiça.
Embora Ellie seja habilidosa, durona e acostumada a todo o tipo de perigo, ela não passa de uma jovem que nunca teve que sobreviver muito tempo fora de uma zona segura, nunca teve que torturar alguém como Joel fez e nunca teve que deliberadamente ser sangue frio pois até então ela matava apenas para se defender. Isso fica evidente após a tortura da Nora, ponto em que Ellie percebe e sente no seu emocional o peso de suas ações, e as marcas em seu corpo são uma simbologia perfeita disso. Por fim, prestes a abrir mão de finalizar sua vingança e finalmente retornar para casa, a consequência de suas ações bate à porta.
Abby e o outro lado de uma mesma moeda
Aqui nós chegamos a outra decisão polêmica do diretor e a segunda quebra de expectativa: Jogar com a assassina de Joel, Abby.
Depois de anos jogando e acompanhando a trajetória de Ellie e Joel, de repente nos vemos jogando com uma personagem desconhecida, que matou a sangue frio um personagem tão querido. A primeira sensação é desconforto, raiva e desânimo, pois como seres humanos estamos condicionados a sermos unilaterais, a enxergarmos as coisas apenas pelo nosso ponto de vista e embora isso não seja o ideal, é completamente natural.
Conforme avançamos, o jogo deixa claro que toda moeda possui dois lados, e logo começamos a perceber as consequências das ações de Joel na vida de outras pessoas fora do nosso ciclo, do nosso ponto de vista. Todas as pessoas possuem família, entes queridos, toda a morte é sentida por alguém que muitas vezes não está inserida no meio que levou ao seu fim. Era o caso de Abby, que era filha do cirurgião que Joel matou para salvar Ellie, e que assim como Ellie, teve como última visão de seu pai, ele ensanguentado no chão.
Como são personagens desconhecidos, dificilmente temos a mesma compaixão, a mesma sensação que tivemos com Joel, e nem era a essa a intenção do diretor, afinal seria impossível emular isso sem o tempo de desenvolvimento que este teve. Não, ao jogar com a Abby, não estamos sendo condicionados a gostar da personagem, e sim apenas a entende-lá, a ver as coisas sob a sua ótica e talvez pensar: “Ok, eu amo o Joel e fiquei triste com a sua morte, e embora eu não goste da Abby por isso, tenho que reconhecer que ela teve seus motivos”.
Neil Druckman, tem como intenção abalar o ódio que cresce em nós, de nos fazer questionar até onde podemos achar que a vingança de Ellie é, de fato, válida. No final das contas, vemos que Abby também possui amigos, também vive em uma comunidade, também ama, e por mais difícil que seja admitir de início, ela não é tão diferente de Ellie, ambas seguem um caminho parecido conduzidas pela ação de um mesmo homem.
Contraponto e redenção
Assim como Joel ou mesmo Ellie, Abby está longe de ser uma pessoa centrada, e mais longe ainda de ser uma heroína. Para além de sua cega vingança contra Joel, podemos ver que a personagem também está inserida em um ciclo de ódio contra um grupo chamado “Serafitas”, em uma guerra que deixa corpos empilhados pelo caminho. Isso muda quando duas crianças, pasmem, serafitas salvam sua vida, nascendo a partir daí o seu ponto de equilíbrio, que até então poderíamos ser conduzidos a pensar que era o Owen, seu antigo amor.
Durante todo o jogo, vamos construindo um laço com estes personagens, os únicos que se mostram minimamente livres deste ciclo de ódio, com uma visão um tanto quanto mais clara de toda a situação. Lev e sua irmã Yara despertam um lado que Abby havia esquecido que existia, uma visão de mundo que seu pai compartilhava, uma antiga esperança na humanidade que parecia tão impossível naquele contexto de guerra, infectados e morte. O ato de coragem e compaixão de duas crianças que supostamente deveriam ser seus inimigos faz Abby questionar suas ações e lugar no mundo, ganhando um contraponto a toda aquela violência, ganhando uma nova forma de pensar e agir que se perpetuaria para o resto de seu arco. Lev e Yara salvam a vida de Abby, muito além do mero ato físico. Mas toda ação tem uma reação, e o seu ato de vingança agora cobra o seu preço.
Abby quebra o ciclo
Após encontrar seu grande amor e sua amiga grávida mortos, Abby volta a mergulhar no ciclo de ódio e parte em busca de Ellie, matando Jesse e quase matando Tommy no caminho. É nesse momento que vemos o primeiro conflito entre as duas, em que ainda jogamos com Abby com o objetivo de matar Ellie, e é aqui que percebemos mais do que nunca que esse ciclo já não faz mais sentido.
Em uma cena onde podemos ver duas pessoas tomadas pelo ódio e seus respectivos pontos de equilíbrio, ao derrotar Ellie e prestes a matar Dina mesmo sabendo de sua gravidez (olho por olho, dente por dente), um desses pontos, Lev, desperta Abby em seu último segundo, fazendo com que ela poupe não só a Dina, como também a Ellie pela segunda vez, quebrando de vez o seu ciclo de ódio e vingança. Um ponto chave pra trama e para a recuperação da humanidade da personagem, que enfim se liberta desse ciclo.
Ellie e seus fantasmas
Alguns anos se passam e vemos Ellie agora morando em paz com Dina e Seu filho, em uma casinha em alguma área pacata. O que aparenta ser o final do jogo, com sua clara paleta de cores e clima de paz, logo se mostra ser uma extensão do agoniante ciclo que foi construído. Ellie sofre com constantes ataques de stress pós traumáticos, revela dormir pouco e perder o apetite diversas vezes, mostrando que nunca superou todos os acontecimentos, com a imagem de Joel morto voltando à tona em sua mente constantemente.
O transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) é um distúrbio da ansiedade caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas físicos, psíquicos e emocionais em decorrência de o portador ter sido vítima ou testemunha de atos violentos ou de situações traumáticas que, em geral, representaram ameaça à sua vida ou à vida de terceiros. Quando se recorda do fato, ele revive o episódio, como se estivesse ocorrendo naquele momento e com a mesma sensação de dor e sofrimento que o agente estressor provocou. Essa recordação, conhecida como revivescência, desencadeia alterações neurofisiológicas e mentais.
Introduzir esse tipo de distúrbio mental é mais um lembrete de que estamos no controle de personagens humanizados, e um convite a nos identificar com o mesmo. Como lidar com um trauma desse em um mundo sem nenhum tipo de tratamento médico organizado? Como continuar com a vida normalmente quando você sofre com todos os sintomas de um distúrbio tão sério?
Mais tarde vemos que Tommy também saiu transformado de todos os acontecimentos, não só fisicamente, mas mentalmente também, embora ele não tenha demonstrado tanto ao longo do jogo, muito em função de sua posição de líder e a necessidade de se mostrar forte. Tommy perdeu seu irmão, seu amigo Jesse, perdeu a visão de um dos olhos e ficou manco, além da sequência de fatos ter culminado no fim de seu casamento. Tudo isso junto é muito até para o mais forte das pessoas, e enquanto Ellie tentava seguir sua vida com Dina, Tommy continuou sua busca pelo paradeiro de Abby, até finalmente encontrar uma pista, mas impossibilitado de segui-la, recorre a Ellie para que dê seguimento à vingança.
Dina tenta impedir Ellie da mesma forma que Lev fez com a Abby na cena do teatro, mas diferentemente de Abby, Ellie não aprendeu a lição, Ellie não se deu conta do papel de um ponto de equilíbrio como esse em sua vida e mais uma vez parte em busca de vingança, tentando de uma maneira irracional afastar os fantasmas que não a deixara com o passar do tempo. Para Ellie naquele momento, matar Abby seria a única maneira de fazer com que os pesadelos cessem, mesmo que a essa altura seja algo que claramente não faz mais sentido. Podemos julgá-la? Como seres humanos, estamos todos sujeitos a nos perdermos diante da mão pesada da vida, e Ellie não é nada mais que uma jovem na casa de seus 20 anos.
A luta final e a quebra definitiva do ciclo
Finalmente temos a conclusão do ciclo, com a luta entre duas mulheres destruídas pelo caminho que escolheram. De um lado vemos uma Abby já há muito tempo livre de todo esse ódio, uma Abby debilitada, que encontrou em Lev um motivo pra seguir em frente depois de perder tudo. Do outro, temos Ellie, completamente cega e perdida, marcada por todos os traumas a que passou. Ellie chega a ameaçar uma criança, sem ao menos ter realmente noção do que está fazendo, sem ao menos ter real dimensão do motivo de estar lutando, naquele momento Ellie já não tem mais certeza se aquilo vai realmente ajudá-la.
É interessante notar que o que de fato inicia o conflito é a imagem de Joel em seu leito de morte novamente passando pela mente de Ellie, e o que o finaliza – com Ellie poupando a vida de Abby, é a imagem de um Joel tranquilo, tocando violão na varanda.
O que fez Ellie finalmente aprender a seguir em frente, não foi a Dina como ponto de equilíbrio, tampouco seu bebê. No final, foi Joel que salvou a Ellie do abismo, foi Joel que encerrou definitivamente o ciclo de ódio. Abby agora tinha uma relação de protetora e protetor com Lev, assim como a própria Ellie havia tido com Joel, e deixá-la ir foi um ato que salvou a vida de Lev também. No final vemos renascer um mundo de possibilidades, e testemunhamos o quão vazio pode ser o sentimento de vingança.
“Aonde há vida, há possibilidade.”
Não foi isso, afinal de contas, que permitiu a construção de Jackson? Não foi isso que devolveu a humanidade que Joel havia perdido?
Muitos esperavam que a história de The Last of Us part 2 terminasse com a conclusão da vingança de Ellie, e nesse caso, essas pessoas jogaram um jogo diferente do que a Naughty Dog de fato teve a intenção de entregar. Lembrem-se: The Last of Us part II não é uma história sobre vingança. Claro, o perdão não é algo fácil de lidar, não faz parte da nossa natureza abrir mão de nosso ego, de nossas feridas, de nosso sofrimento e deixar o causador ir, não é fácil se desvencilhar de um ressentimentos e isso faz com que parte da divisão na fan base seja compreensível. Nesse sentido, The Last of Us part II não é um jogo para todo mundo, e o fato de ser tão divisivo foi um preço a se pagar.
O custo do ciclo de vingança
Ellie pagou o preço por ter aprendido a lição tão tardiamente, e acabou perdendo dois dedos, a impossibilitando de tocar violão, o último legado que Joel deixou para ela. Também perdeu seu amigo Jessie, e sua família, pois Dina foi embora com o bebê.
No primeiro jogo, Ellie chega a mencionar que seu maior medo era ficar sozinha, e tragicamente todos os eventos a puxam para esse desfecho.
Sozinha, de violão na mão impossibilitada de tocar, Ellie se lembra de seu último momento com o Joel, onde nos é revelado que em seu último diálogo com ele, ela havia decidido tentar perdoá-lo. Sua vingança foi movida não só por Abby ter tirado a vida de Joel, mas também por ela ter tirado a chance de perdoá-lo.
Se engana quem Acha que Abby saiu ganhando ou “menos prejudicada” de alguma maneira. Sua vingança com Joel embora bem sucedida de um ponto de vista objetivo, lhe custou todos a quem amava, além de sofrer todo o tipo de abuso físico em seus últimos momentos do jogo.
Ellie e Abby perderam muito, mas a partir do momento que ainda tem a sua vida preservada, também ganham um mundo de possibilidades para recomeçar, para pôr o passado para trás e aprenderam a lição que todo aquele sofrimento as ensinou. É sim um final depressivo, mas também cheio de possibilidades.
The Last of Us part II não foi a continuação que pedimos ou esperávamos, mas sem dúvida alguma foi uma continuação perfeita para uma história humana, uma história que não tem medo de questionar nossas atitudes perante situações adversas, não tem medo de questionar nossas falhas enquanto seres humanos e não tem medo de mostrar a vida como ela é, vida essa que nem sempre cumpre nossas expectativas, nem sempre entrega o que pensamos ser o ideal, nem sempre nos dá o que queremos e nem sempre termina com um final feliz como na maioria dos jogos ou filmes da Disney. É isso que faz da história The Last of Us part II algo tão único e tão necessário na indústria de games. É isso, aliado a outros elementos, que faz com que The Last of Us part II seja uma obra-prima.
E você, leitor, o que achou da história? De que lado você está? Dos que odiaram ou dos que amaram? Dê sua opinião nos comentários.
Melhor jogo ja feito.
Parabéns pela analise.
Obrigado, Bruno! Concordo plenamente, se tornou meu jogo favorito em toda minha vida como gamer. Um abraço e volte mais vezes!
[…] mas extremamente competente em tudo que se propunha. Na análise anterior (que você pode conferir aqui), focamos na história que o jogo apresentou, e agora apresentaremos uma análise abrangendo todos […]