Análise – Red Dead Redemption 2 reforçou o amor que tenho pelos videogames
15 de agosto de 2020Certo dia jogando Red Dead Redemption 2 resolvi chamar meu pai, que não entende absolutamente nada de videogames, pra dar uma olhada. Mostrei um pouco a paisagem; dei uma voltinha com o cavalo; dei uns tiros pra ele ver o “boneco” engatilhar e recarregar; mostrei as vacas no cercado (ele veio do interior, então ele adora isso) me joguei no chão pra ele ver a lama na roupa do personagem; cacei e esfolei a pele de um animal; fiz um café e uma carne assada na fogueira e até passei o controle pra ele acariciar o cavalo. As reações me fizeram sorrir, pois ele parecia uma criança genuinamente impressionada com uma nova tecnologia ou brinquedo. “Usaram partes de filmes pra fazer isso, né?”; “Não, não, não é possível, isso é muito real meu”; “Acho que no futuro o homem vai destruir a natureza e tudo que vai sobrar vai ser assim virtual mesmo” ele dizia. Olhava pra minha cara num sorriso incrédulo sempre que via algum dos inúmeros detalhes absurdos do jogo. No fim ele me devolveu o controle e encerrou dizendo: “O cara que cria um negócio desses merece ganhar dinheiro, tá louco”.
Isso ficou na minha cabeça.
Quando foi a última vez que você apreciou um jogo de maneira pura assim? Que jogo teve esse efeito em você? Você ainda é capaz de apreciar a arte contida nos games?
A cada sessão de jogatina e aventura vivenciada, Red dead Redemption 2 reforçava o amor que eu tenho pelos videogames. A rockstar criou uma obra de arte extremamente completa e cuidadosamente construída nos seus mínimos detalhes, não livre de defeitos, é verdade; mas ainda assim elevou o nível de tal forma, que acredito que irá demorar pra eu voltar a me acostumar com o padrão que vemos na maioria dos jogos atualmente. É um jogo absurdamente imersivo, que impressiona; diverte; emociona e que no fim traz aquela sensação de vazio e vontade de experimentar aquilo como se fosse a primeira vez novamente.
Escrever sobre Red Dead Redemption 2 é um convite a se perder em seus próprios pensamentos tamanha a grandiosidade do game, que sem dúvidas vai deixar a sua marca na indústria.
Desafiando a cultura do imediatismo
O ser humano sempre buscou satisfazer suas necessidades e isso não é algo novo. Com a expansão da cultura digital, os limites de tempo necessários para realizar uma ação e obter seu resultado foram bastante reduzidos. Douglas Rushkoff, autor e documentarista que estuda a autonomia humana na era digital, defende em um de seus livros que as mídias digitais aboliram a ideia do amanhã e que o tempo deixou de ser um conceito linear para dar lugar a um “instante prolongado”. No mundo dos games isso pode ser percebido na ascensão cada vez maior do multiplayer competitivo e no sucesso estrondoso de games como PUBG, Fortnite e até mesmo – pra citar um exemplo da própria Rockstar – GTA online. Jogos como JRPG’s por turno perderam completamente seu espaço e a nova geração está ávida por games com ação desenfreada, que entreguem cada vez mais “recompensas instantâneas”, mesmo que isso signifique desembolsar dinheiro para a compra de itens in-game, as famigeradas microtransações.
Red Dead Redemption 2 desafia esse conceito entregando um jogo que não tem pressa nenhuma de envolver o player, e que ao invés de jogá-lo imediatamente na ação livre, busca construir pouco a pouco sua relação com as mecânicas e até mesmo com o enredo do mesmo. Se eu fosse fazer uma analogia com a música – outra arte em que o imediatismo exerce sua influência – eu diria que Red Dead Redemption 2 é aquela música com mais de 6 minutos de duração, complexa, que foge dos padrões estruturais comuns na indústria, e que por isso demora a “grudar” na cabeça, mas que esconde uma beleza de composição rara de se ver. Se alguém acostumado a escutar pop diariamente ser apresentado à Moonlight Sonata de Ludwig Van Beethoven, provavelmente sua opinião será algo entre chato e entediante.
Logo de cara é possível perceber essa característica nos processos para realizar as ações comuns do jogo. Se traçarmos um paralelo com o seu antecessor isso fica visível, veja um comparativo entre a caça nos dois jogos:
Red Dead Redemption
Usar isca (se necessário) —> Sacar a arma —> Mirar —> atirar —> ir até o corpo e esfolar o animal
Red Dead Redemption 2
Usar isca (opcional) —> usar um item que esconde seu cheiro (opcional) —> Observar e identificar o animal pelo binóculo —> selecionar a arma com o calibre correto no inventário do cavalo para não prejudicar a qualidade da pele —> empunhar —> mirar —> atirar —> engatilhar outro tiro caso necessário —> ir até o corpo, esfolar e/ou pegar o corpo e colocar no lombo do cavalo para vender/levar para o acampamento
Esse é apenas um exemplo de muitos contidos nessa nova proposta; tudo é incrivelmente detalhado e individualmente animado, muitas vezes desnecessário sob um olhar mais frio, mas que traz uma identidade única e uma imersão inigualável.
No jogo, para extrair o melhor de Arthur você deve comer diariamente para manter o seu peso ideal; tomar banho para ganhar bônus de fôlego (e para não gerar reações negativas dos npc’s); o seu cavalo também precisa de cuidados como alimentação e limpeza, que afeta seus status e seu nível de vínculo com ele (falaremos disso mais pra frente). Todas essas ações possuem comandos e animações individuais, no banho há um botão para esfregar os braços, por exemplo; há até um comando que faz com que o Arthur comente sua própria aparência no espelho. Tudo isso é realmente necessário? Com certeza não, mas sem dúvida foi um caminho que trouxe uma identidade única ao game e aqui devo destacar um truque de mestre da Rockstar: Nada disso é obrigatório.
E por que isso é um trunfo?
Claro, há alguns benefícios em realizar as atividades “mundanas” do game, mas você não vai morrer de fome se decidir não comer; você não perde nada importante por não tomar banho; nada disso afeta de forma considerável seu gameplay a ponto de você poder ignorar isso tudo se assim desejar, mas ainda assim o jogo te envolve de tal forma que você faz tudo isso sem ao menos perceber. Sempre que eu voltava pro acampamento eu levava comida pra todo mundo e ao acordar pela manhã eu ia pra fogueira tomar um café e interagir com quem estivesse por ali; depois eu ia cortar lenha mesmo aquilo não trazendo nenhum benefício pra mim e então depois eu ia até meu cavalo e o alimentava também, escovava seus pelos e enquanto o Arthur sussurrava algo carinhoso pro seu cavalo eu me pegava quase fazendo o mesmo em pensamento. Tudo no game é tão crível e vivo, que é simplesmente impossível não se envolver e entrar na pele do Arthur Morgan e quando você mergulha assim no jogo, as mecânicas que poderiam à primeira vista parecer entediantes se tornam parte fundamental da experiência.
Como nem tudo são flores, a Rockstar muitas vezes comete exageros e decisões questionáveis que acabam quebrando de vez em quando a imersão para, aí sim, dar lugar ao cansativo e entediante. Não consigo achar uma explicação plausível para você ter que segurar o botão por 2 ou 3 segundos pra dar load no checkpoint ao invés de simplesmente apertá-lo uma vez, e isso se torna ainda pior quando você quer doar itens para o acampamento e tem que segurar o botão pra cada um deles, um de cada vez, tornando a tarefa maçante e desnecessária. Também não vejo explicação plausível para você não poder acessar o menu de armas dentro do acampamento ao menos para ver a quantidade de munição que você possui, pela lógica isso foi feito para você não sair atirando dentro do acampamento, é algo que o Dutch proibiria e faz sentido, mas por que não simplesmente deixar você limpar a arma? (curiosamente já vi vários outros personagens fazendo isso lá dentro).
No balanço final o saldo é positivo e a paciência do jogador é recompensada em generosas doses de imersão e a sensação de estar experimentando algo único num gênero cada vez mais saturado. Experimente sentar em volta da fogueira à noite, bebendo uma cerveja (in-game e pessoalmente, why not?) com seus parceiros e curta um pouco da mágica feita pela Rockstar.
O jogo mais ambicioso e orgânico já feito
Em um certo momento do jogo eu estava precisando de pele de gado e o único lugar que encontrei foi em uma fazenda relativamente próxima donde eu estava acampado, o que significaria que eu teria que roubar uma ou duas vacas do pobre fazendeiro. Bom, eu não queria matar ninguém por causa de gado, então resolvi esperar anoitecer e fazer o serviço sujo no modo stealth enquanto os donos da casa dormiam, montei o meu acampamento um pouco mais próximo, esperei anoitecer e comecei a planejar como eu faria aquilo sem ser visto. Me posicionei numa moita um pouco distante e comecei a observar através do meu binóculo, a casa ficava praticamente do lado do cercado e pra minha irritação o dono da casa ainda estava acordado fumando um cigarro encostado numa das vigas da casa, do lado de fora. A essa altura eu já sabia que aquele NPC não ficaria simplesmente parado ali o tempo todo então resolvi esperar um pouco, após uns 5 minutos chegou uma carruagem carregada do que pareciam sacos de areia ou ração, algo assim; o condutor desceu, falou algo com o dono da casa, foi até a carroça, pegou um dos sacos e o deixou próximo à casa, depois ele subiu novamente na carruagem e partiu, só então o dono da casa entrou. Esperei mais uns 2 minutos e parti pra ação; empunhei meu arco com flecha melhorada que havia preparado no acampamento e me aproximei um pouco mais, mirei no pescoço da pobre vaquinha e atirei. O som dos grilos e do vento deu lugar ao grito alto e curto da vaca, ao passo em que as outras levantavam e começavam a mugir assustadas, achei que isso acordaria o morador e coloquei a bandana no rosto, acelerei o passo e peguei cover no cercado esperando o morador sair, mas isso não aconteceu, então pulei o cercado e me apressei para esfolar a vaca e pegar sua pele enquanto as outras vacas continuavam assustadas mugindo sem parar, andando e correndo de um lado pro outro. Peguei a enorme quantidade de pele, coloquei no ombro, levei até o meu cavalo e saí dali pensando o quão legal foi aquilo e até esbocei uma risada ao imaginar o fazendeiro levantando de manhã e vendo a vaca morta sem a pele no cercado e, conhecendo RDR2, tenho certeza que alguma reação ele teria.
Isso não foi uma missão, não foi uma sidequest, não foi nenhum tipo de evento marcado no mapa nem nada do tipo; foi apenas uma aventura aleatória que eu vivi baseado nas minhas decisões, e possível acima de tudo graças a megalomania da Rockstar ao criar o open world mais vivo e ambicioso já feito. Em RDR2 o mundo continua girando e funcionando mesmo sem a sua presença, você nunca sabe o que esperar e isso faz com que a cada dia e aventura vivida, você tenha uma história pra contar ao redor da fogueira.
É simplesmente impossível não se impressionar com a infinidade de reações e comportamentos de todos os NPC’s no game. Fique algum tempo muito próximo a um npc e ele vai começar a estranhar e te questionar pedindo algum espaço; esbarre em algum e ele pode tanto te xingar e querer comprar uma briga como também pode apenas pedir desculpas; brigue no saloon e no dia seguinte o bartender irá lembrar de você pedindo para que não arrume mais confusão; comece uma briga com uma pessoa que esteja acompanhado e a outra pessoa pode ajudar seu amigo ou correr pra buscar o xerife, e por aí vai. Você pode estar andando também e acabar presenciando uma briga por causa de um suposto caso de traição no bar, ou pode acabar vendo um NPC se acidentar ao tentar manejar uma arma; as possibilidades são extremamente diversificadas. O comportamento das 200 espécies de animais presentes no game é igualmente impressionante; certa vez ao caçar um veado eu errei o tiro que acabou pegando em um lugar não letal, ele começou a correr, mas logo caiu e ao chegar lá o vi agonizando e se contorcendo, aquilo foi tão intenso e crível que eu me senti genuinamente culpado por aquilo e acabei dando o tiro de misericórdia, me arrependendo daquele dia de caça. Uma outra vez enquanto estava pescando vi uma águia dar um rasante e pegar algo na água; uma outra vi de longe através do binóculo uma alcateia onde dois dos lobos estavam meio que brincando um com o outro; ao cumprimentar e fazer carinho num cachorro na cidade (sim, vc pode fazer carinho nos dogs e nos gatos também) ele parece ter se afeiçoado por mim, pois em uma outra vez que cheguei na cidade ele veio correndo abanando o rabo pra mim. Eu poderia passar horas escrevendo e ainda assim deixaria de mencionar algum elemento que compõe a vida em RDR2.
Essa ambição com que a Rockstar conduz o seu mundo aberto não se limita somente aos seres vivos, o clima também é um dos mais naturais e fielmente criados que eu já vi. As tempestades chegam a ser assustadoras tamanha fidelidade de som, com raios caindo aleatoriamente e às vezes até próximo de você (há relatos inclusive de gente que teve seu personagem morto por um raio). Os arco-íris que se formam, os céus estrelados, as transições de dia e noite extremamente naturais, tudo contribui pro realismo e complexidade do mundo.
Vínculos e laços importam
Deixei pra falar aqui de um animal em específico: Os cavalos.
Seu fiel companheiro e principal meio de transporte recebeu um cuidado especial em RDR2. Eles deixaram de ser apenas um meio de transporte e ganharam autonomia e sobretudo… vida.
Agora você precisa cuidar dele para que o vínculo entre vocês aumente e assim fique mais fácil de controlá-lo, desbloqueie novas “manobras”, aumente o alcance de resposta do seu assovio e o torne mais fiel. Há níveis de vínculo e quanto maior, melhor. Mas esse sistema vai muito além do fator gameplay, pois você realmente cria um laço e uma preocupação com seu animal como se fosse um irmão de gangue, aos poucos você vai se apegando e dificilmente vai querer trocá-lo por outro até o final do game, e como a morte do mesmo é permanente, o cuidado com ele ganha um outro significado. Há várias raças de cavalo com características, cores e comportamentos diferentes, alguns são mais corredores, outros mais fortes e ideais para lutas armadas, alguns mais equilibrados, etc. Apesar de você estar no comando, eles possuem seus próprios medos e às vezes podem até tomar decisões próprias como te jogar pra fora e correr caso uma ameaça chegue muito perto, pode te dar um coice caso você o machuque de alguma maneira e pode até mesmo expulsar um estranho que tente montá-lo caso ele seja fiel a você. Em uma de minhas jogatinas um desavisado veio me pedir carona e resolveu me roubar, quando ele estava contando vantagem já a uns 100 metros eu assoviei e vi de longe meu cavalo jogando-o pro alto e voltando pra mim.
Mas não é só com o cavalo que você se apega nesse jogo.
A gangue Van Der Linde é uma grande família composta por tantos personagens carismáticos e (novamente) vivos, que é simplesmente impossível não se sentir responsável por eles. Na minha jogatina eu fiquei genuinamente preocupado com manutenção do acampamento; por vezes eu tirava o dia somente pra caçar e levar comida para o acampamento e doava sempre metade do lucro de qualquer roubo ou loot meu, assim como manda a regra imposta por Dutch. As interações no acampamento são constantes e acontecem independentemente da sua presença estendendo a autonomia do mundo de RDR2 também para dentro do acampamento.
Há um último e curioso vínculo que você sem perceber também acaba criando: As armas.
As armas possuem características próprias que as tornam bem distintas umas das outras e precisam ser limpas de vez em quando; além do fato de que agora há a possibilidade de personalizá-las com dezenas de opções como entalhes, cor do verniz, material de composição e até pequenos upgrades como luneta, raiamento, mira de ferro, etc. No fim, é inevitável escolher aquele seu revólver de confiança que somente você possui devido à customização única que você fez, ou aquele rifle com um lobo entalhado que você usa somente pra caçar, e por aí vai.
As aventuras de um pistoleiro no velho-oeste
Em termos de conteúdo RDR2 é o jogo mais ambicioso já feito e não são as mais de 60 horas de campanha ou as dezenas de sidequests que definem isso. A fórmula padrão de um game open world resumidamente falando é mais ou menos essa: Um mapa enorme com as missões principais; as sidequests marcadas no mapa; algum tipo de torre pra ir liberando o desenho do mapa; alguns pontos de interrogações ou exclamações marcadas no mapa indicando atividades aleatórias como bases de inimigos, pequenos mini games de entrega ou coisas assim. RDR2 segue parte dessa mesma fórmula, porém com uma diferença que muda muito a experiência como um todo:
Os eventos aleatórios e as casualidades não são marcadas no mapa.
A princípio pode ser uma característica insignificante, mas a maneira absurdamente diversificada e detalhada com que a Rockstar conduz isso torna tudo muito natural. E é isso que torna RDR2 tão autoral frente a tantas outras experiências – muitas vezes genéricas – existentes no mercado atual.
Eu estava cavalgando tranquilamente pelas heartlands, inicialmente com o objetivo de achar um bisão, e no caminho encontrei um velho cego pedindo uma esmola, desci do cavalo e decidi ajudá-lo, o que fez com que ele fizesse uma previsão carregada de mistério a respeito do Arthur. Pois bem, segui meu caminho e acabei encontrando uma mulher desesperada embaixo de um cavalo pedindo ajuda na estrada, desci do cavalo e fui ajudá-la levantando o cavalo, após se despedir do animal morto ela agradeceu e eu fiquei com a opção de deixar ela lá ou oferecer uma carona de volta pra cidade, optei então pela segunda opção gerando um diálogo interessante mencionando que aquele cavalo pertencia a uma amiga dela chamada Mildred. Já em uma outra jogatina eu estava em West Elizabeth e avistei uma carroça toda quebrada junto a um corpo na parte de baixo de um penhasco, havia um npc olhando o acidente que chegou a comentar comigo que o rapaz morto morava numa casa ali ao lado e que ao voltar pra cidade iria chamar o sheriff; curioso como eu sou desci até o local do acidente e vasculhei o corpo e uma caixa que estava próxima a carroça encontrando respectivamente uma foto de uma noiva e uma certidão de casamento, o sujeito se chamava Jim se não me falha a memória e a esposa… Mildred. Fui até a casa que o NPC disse ser do sujeito morto e na porta encontrei um bilhete escrito por ele dizendo que ele estava indo buscar sua esposa, Mildred e ao lado desse bilhete havia um pássaro morto em perfeito estado. Seria essa Mildred a mesma mencionada pela garota acidentada no cavalo? Será que é possível encontrá-la no jogo? Talvez na minha próxima jogatina eu descubra, talvez algum outro player tenha encontrado em ordem inversa, talvez a rockstar apenas tenha brincado com a nossa curiosidade.
Em uma outra jogatina eu estava em Lemoyne caçando um castor o qual estava extremamente difícil de encontrar com a pele em perfeitas condições, no terceiro dia in-game rastreando, acabei encontrando um num daqueles diques que eles constroem na água. A tensão pra não errar o tiro foi uma sensação incrível, parece que eu estava na pele do Arthur pensando comigo mesmo que se eu perdesse aquela chance eu teria que novamente rastrear e perder muito tempo, até que tive êxito, e foi recompensador. Voltando com a bota cheia de lama e a pele na mão pra colocar no meu cavalo em meio a densa floresta num final de tarde com raios de sol penetrando as folhagens, avistei alguns metros à frente um acampamento e comecei a escutar alguns gritos de ajuda, fui checar e os gemidos viam de uma pessoa dentro de uma barraca alegando que estava com varíola; me aproximei mais um pouco e 3 sujeitos de uma gangue local saíram, me emboscando e falando debochadamente que eu deveria me envergonhar por tentar roubar uma pessoa doente. Fingi me render e quando um deles se aproximou pra roubar meu dinheiro, meti chumbo em todos eles.
Em um outro dia, novamente nas planícies de Heartlands, encontrei algumas poças e rastros de sangue e ao segui-las até embaixo de uma ponte, pra minha genuína surpresa, vi um corpo dilacerado e pendurado no topo de uma forma tão doentia que na hora me veio Silent Hill na cabeça. Ali próximo havia a cabeça do pobre coitado cravado na estrutura de madeira, com um pedaço de um mapa enfiado na boca, peguei o mapa e parecia estar faltando mais três pedaços, ao lado em uma parede os dizeres escritos com uma tinta branca “look on my work” (veja meu trabalho ou veja minha obra, numa tradução livre). Esse mistério tem uma solução o qual obviamente não vou spoilar aqui, mas adianto que é melhor que muita sidequest de jogos consagrados por aí.
Tudo isso não aparece no mapa, não conta como sidequest, não tem indicações no mapa nem nada assim, são coisas que você encontra aleatoriamente da forma mais natural e realista possível, devendo buscar ou não uma possível solução de acordo com a sua vontade. E isso é só uma fração mínima frente à enorme variedade de eventos e coisas que você pode encontrar dessa maneira no mundo de RDR2. Alguns eventos até se repetem, mas muito pouco e de forma bem espaçada o que é uma evolução muito grande em relação ao seu antecessor, o qual você já percebia esse problema relativamente cedo na sua campanha. Aqui na minha primeira campanha foram poucas repetições, o do npc picado pela cobra chegou a se repetir umas 3 vezes (em locais diferentes) em cerca de 100 horas; as emboscadas tem uma variedade bem grande e sempre acontecem em locais diferentes e com bandidos de diferentes gangues e tipos, então mesmo que se repita, elas nunca parecem repetidas de fato. No momento em que escrevo esse review eu estou jogando o game pela segunda vez, e ainda assim estou vendo coisas que não havia visto na minha primeira vez e em uma rápida zapeada nos fóruns e canais do youtube dedicados ao game, é possível perceber que há muito mais a ser descoberto e vivenciado. É simplesmente incrível.
Mas e o gameplay?
Aqui temos talvez o aspecto que mais causou polêmica no game. Antes de mais nada eu preciso dizer que não joguei com a configuração default do game, não usei mira automática (exceto a cavalo) e alterei algumas outras opções como o dead zone. Dito isso, devo dizer que sim, a jogabilidade possui diversas falhas.
No geral, eu diria que é muito parecido com GTA IV e V, porém com um pouco mais de peso que esse segundo. A movimentação do Arthur em si é boa, diferente do que muita gente achou, claro que nunca irá se comparar com jogos como God of War e Uncharted, por exemplo, mas é satisfatória; andar a cavalo é o ponto mais acertado desse aspecto pois achei extremamente prazeroso (exceto na câmera em primeira pessoa) e responsivo. Há quem ache ruim o fato dele não correr no acampamento, mas isso se trata muito mais sobre o que falei no começo da análise do que a jogabilidade em si; há também quem reclame do fato do cavalo tropeçar em obstáculos e bater em árvores e, novamente, devo dizer que isso não tem muito a ver com falha na jogabilidade e sim com escolhas de física e realismo, o que pra mim foi algo acertado no game pois contribui para a interatividade com o mundo.
A mira no jogo é razoável, na configuração em que eu joguei achei bastante satisfatória precisando apenas de tempo pra se acostumar, porém acertar em alguém enquanto se está em movimento é irritantemente difícil sem o Dead Eye. Se você vem de shooters mais ágeis e precisos como FPS em geral se prepare pra se adequar ou passar raiva, pois sim, em relação a esse tipo de jogo RDR2 é muito inferior nesse aspecto, afinal, é de um jogo da Rockstar que estamos falando e mira nunca foi o destaque deles (a exceção fica por Max Payne).
O sistema de Dead Eye está muito bom e funcional, mantendo os acertos do primeiro e adicionando algumas melhorias bem legais, como um sistema de level onde com o tempo você desbloqueia a habilidade de expor os pontos vitais dos inimigos, ou então a habilidade de manter o dead eye ativado enquanto você mata sem marcar ninguém.
O maior erro está no sistema de cover que é muito impreciso. Por vezes você vai ficar na dúvida se ele realmente está no cover e vai se irritar com a demora na resposta para entrar no mesmo. A sensação que fica é que parece que ele não “gruda” no cover e apesar de não ser um transtorno que vá te fazer falhar na missão, sem dúvida alguma é um problema que incomoda em muitos momentos.
Os menus do jogo também podem ser muito confusos, principalmente no começo em decorrência de uma burocracia na maioria das vezes desnecessária, e aqueles já tradicionais textos explicativos da Rockstar não ajudam deixando passar mecânicas importantes, o que contribui ainda mais para que o jogador fique completamente perdido no começo.
No fim das contas a sensação que fica é que apesar de estar longe de estragar a experiência no geral, a Rockstar poderia ter se esforçado mais nesses 8 anos para deixar o jogo mais polido nesse sentido, ainda mais levando em consideração o contraste que fica se comparado com o perfeccionismo nas demais áreas do game.
Sim, precisamos falar dos gráficos
Falar de gráficos na 8ª geração de consoles se tornou praticamente redundante pois qualquer game lançado no mercado é, no mínimo, bonito. Chegamos ao ponto em que gráficos não surpreendem e acaba sendo o mínimo do mínimo que um jogo deve entregar e, quando surgem games que se destacam por isso e quebram a barreira do comum e supérfluo sem dúvida é algo especial que deve ser elogiado propriamente, como por exemplo o incrível mundo medieval de The Witcher 3; a impecável ambientação nórdica de God of War e a beleza do mundo pós apocalíptico de Horizon Zero Dawn; aliás, quando joguei este último achei que nada mais nessa geração poderia superá-lo nesse quesito. Eu estava errado.
É impossível não se impressionar com o visual absolutamente perfeito de RDR2; as paisagens são um convite pra parar a jogatina e ficar admirando-a a todo momento e, soma-se isso aos infinitos detalhes interativos e você tem o que pra mim, é o melhor gráfico já feito. É simplesmente surreal algo nesse nível rodar em um hardware de 2013 de forma sólida (eu não tive problemas com queda de frames durante minha jogatina, exceto talvez em momentos em que eu corria em alta velocidade em St. Dennis) e são pouco os games existentes no mercado que não pareçam uma geração atrás se comparado ao RDR2. Sim, é bom a esse nível. A Rockstar já havia conseguido me surpreender lá atrás com o primeiro RDR, na época (e até hoje envelheceu muito bem), pois pra mim era o que tinha de mais surpreendente, eu não cansava de admirar aquele cenário que parecia ter sido feito a mão por algum artista extremamente talentoso, e agora eles repetiram a façanha de novo numa escala muito maior.
As chuvas deixando o chão lamacento; a luz passando por entre as árvores; o luar à noite; a iluminação de St. Denis; os pântanos de Lemoyne. Jogando com o headset e andando em New Austin eu podia quase sentir o calor daquele enorme e seco ambiente. Cada paleta de cores, cada árvore, cada vegetação parece ter tido o maior cuidado possível e escancara os milagres que dinheiro, tempo e um time de desenvolvedores talentosos (e um pouco de trabalho abusivo, se as denúncias forem verdadeiras) podem alcançar.
Uma fogueira e uma boa música
O poder da trilha sonora em um game muitas vezes é subestimada, mas sem dúvida é um dos aspectos que podem fazer a diferença na hora de tornar um game eterno em nossa memória ou apenas mais um na prateleira. A trilha sonora foi um fator determinante pra tornar o enredo e a experiência como um todo do primeiro RDR1 marcante pra tantos gamers, afinal, alguém aqui esquece como foi a primeira cavalgado pro México? Pois prepare-se pra muitos momentos como esse, pois a trilha sonora de RDR2 traz um misto de emoções ao longo de todo o game, tamanha perfeição.
É possível logo de cara perceber que o timing em que as músicas tocam, cada uma delas, seja ela de ação, emotiva, ambiente ou até mesmo festeira é cuidadosamente bem colocada em cada momento do jogo, além de ser algo presente durante quase todo o game. Festa no acampamento? É um trabalho pro Javier com seu violão e todos os demais membros – inclusive você, Arthur. É sensacional e crível as cantorias e mais sensacional ainda você ter um comando pra cantar junto e perceber que algumas vezes o Arthur apenas murmura no ritmo quando não sabe a letra; presenciar esses momentos musicais faz você praticamente esquecer que aquela é uma história sobre o declínio da Gangue, e por alguns minutos você acha que a Gangue será feliz assim para sempre.
Saiu e foi emboscado na estrada? Música de ação/suspense. Está sendo investigado pelas autoridades? Música cheia de suspense preparando um possível climax; está cavalgando tranquilamente apenas ouvindo os sons da natureza? De vez em quando o Arthur arrisca uma cantoria. E mesmo quando não há nenhuma música cantando, os sons ambientes também não deixam de ser música para os ouvidos.
Músicas como “That’s the way it is”; “See the fire in your eyes”; “Cruel, Cruel world” e “May i stand unshaken” (não escute essas músicas caso ainda não tenha jogado o game), acredite, vai acompanhar você por muito tempo mesmo depois de você ter terminado o game.
Música é mais uma arte que contribui e compõe essa obra fantástica, e sem dúvida essa trilha sonora ficará marcada pra sempre em meu coração ao lado de um grupo seleto de trilhas de games como Castlevania Sotn; The last of us; Metal Gear Solid; Final Fantasy, entre outros.
Arthur Morgan, o protagonista revelação
Quando os primeiros trailers saíram e o protagonista foi revelado, meu sentimento era indiferença e eu tenho certeza que esse era o sentimento da maioria. Eu tinha toda a convicção do mundo que dentre tudo que a Rockstar poderia melhorar em relação ao primeiro game, a única coisa que ela não poderia superar era o icônico protagonista John Marston.
Eu estava errado… muito errado. A Rockstar queimou a minha língua.
Há muitos protagonistas memoráveis no mundo dos games por diversos motivos e personalidades diferentes, mas poucos deles passam a sensação de humanidade, aquela vulnerabilidade e incerteza presente em todos nós, o que é compreensível dada a temática em que normalmente são inseridos esses protagonistas; mas quando uma desenvolvedora consegue atingir essa humanidade o resultado gera um envolvimento e um vínculo que nem mesmo grandes blockbusters de hollywood, com seus atores e renomados diretores, conseguem atingir, até pelas diferenças entre as mídias, onde uma é interativa e você vive o personagem e a outra apenas te apresenta o mesmo. Talvez o maior exemplo recente seja Joel e Ellie (The Last of Us), com seus sentimentos conflitantes e suas decisões pautadas na emoção e no instinto de sobrevivência, que tanto cativaram os players.
Arthur Morgan se enquadra nesse grupo tão seleto de protagonistas que de tão humano e crível, você por vezes esquece que é só um personagem, que ele não existe e nem nunca existiu.
Arthur está com 36 anos quando a história se inicia, um pistoleiro que viveu o auge da Gangue Van der linde estando com ela desde criança e que acabou se tornando um homem de confiança de seu líder, Dutch Van Der Linde, o qual o vê praticamente como um filho. Agora ele aos poucos vai presenciando o declínio da gangue e do seu líder ao passo em que começa a questionar seus próprios atos e o seu papel num mundo em constante mudança. A princípio parece ser apenas mais um pistoleiro caricato, com pose de machão, sarcástico e sem coração, cuja decisões são única e exclusivamente pautadas em sua lealdade ao Dutch; mas basta permanecer um tempo com ele ou abrir o seu diário para ver que por trás dessa pose toda tem um cara introspectivo e sincero, cheio de medos e incertezas sobre os meios e sobre o seu fim, uma pessoa que em nenhum momento esconde seus atos ou sua natureza, mas que constantemente tenta entendê-la e buscar uma forma de lidar.
Acho que falar mais dele sem me enveredar em spoilers é difícil, eu acabaria sendo superficial e isso seria uma injustiça com ele. Acho que pra encerrar posso dizer que Arthur Morgan é o melhor personagem já criado pela Rockstar e é provavelmente meu protagonista favorito de toda a minha história com os videogames.
Os filhos de Dutch Van Der Linde
Fazer um prequel de qualidade não é uma tarefa fácil, afinal explicar origens para histórias já estabelecidas sem a existência de um plano (Dutch intensifies) para uma sequência é um terreno fértil para diversos furos de roteiro. Felizmente esse não foi o caso da Rockstar que conseguiu enriquecer ainda mais o primeiro game, passando a sensação, pelo o menos pra mim, de dois games formando uma unidade só.
Em RDR não tivemos a oportunidade de ver, mesmo que através de algum flashback, os eventos que culminaram na separação de John Marston da gangue Van der Linde e na sua caça aos antigos companheiros, Bill, Javier e Dutch. Apesar da história do primeiro ser um de seus maiores pontos positivos, sempre achei que desenvolveram muito pouco os vilões tendo eles apenas breves (e ótimas) aparições. Agora com a sequência, que se passa 12 anos antes, todos os personagens foram aprofundados e extremamente bem trabalhados.
O jogo mostra a luta pela sobrevivência da gangue em um mundo em constante transformação que recusa sua existência; é uma história que não se trata apenas de foras da lei, mas sim de família, lealdade e, claro, redenção. Sabendo que a era dos foras da lei chegou ao fim, Dutch Van Der Linde precisa liderar e manter sua gangue unida para escapar da incansável perseguição dos Pinkertons (uma espécie de FBI da época) após um assalto que deu muito errado em Blackwater, e assim encerrar de vez suas atividades em algum lugar seguro.
Dutch Van Der Linde é sem sombra de dúvida um dos destaques da trama e provavelmente um dos melhores vilões já criados. É fascinante como ele se transforma pouco a pouco ao longo do game juntamente com nossos sentimentos sobre ele. É um homem inteligente; cheio de convicções e filosofias de mundo próprias e acima de tudo um líder nato, tanto que no ínicio do game é inevitável não se perguntar, “Mas peraí, esse cara até que é legal, como ele se torna aquele vilão que eu conheci?”.
Tanto Javier Escuella como Bill Willianson também estão de volta, assim como Uncle (mais preguiçoso que nunca e um dos alívios cômicos do game); Abigail; seu filho Jack (nesse game uma criança ainda), e claro, o próprio John Marston. Todos muito bem desenvolvidos e devidamente aprofundados, cada um à sua maneira. Mas não só de personagens já existentes RDR2 sobrevive, o jogo agora tem uma gama de personagens interessantíssimos e devidamente destacados no enredo, como a incrível Sadie Adler que demora a se desenvolver, mas quando o faz… uau, que personagem. A própria gangue, como um todo, parece ser um grande personagem e a Rockstar merece aplausos por isso. Vale lembrar que isso não seria possível sem um time extremamente talentosos de atores e uma dublagem perfeita.
RDR2 possui uma história incrível, cheia de referências inteligentes ao primeiro game; é uma história que emociona, diverte e que merece ser vivenciada até o fim prometendo momentos memoráveis na sua vida gamer; mesmo que as missões principais que a contam sejam infelizmente, tão engessadas em suas mecânicas. O jogo sem dúvida possui missões extremamente variadas, emocionantes, e divertidas, mas infelizmente peca na falta de liberdade e opções para que o jogador a termine da forma que achar melhor, se limitando a conduzi-lo do ponto A até o B.
Red Dead Redemption 2 veio em um ano difícil da minha vida, e no momento em que comecei a jogá-lo uma injeção de ânimo se deu sobre mim; de repente eu me vi animado para chegar em casa depois do trabalho e continuar minhas aventuras velho-oeste a fora. Eu ri; me surpreendi; me diverti por horas a fio; chorei e de repente, sem perceber eu era uma criança novamente, no sentido de ser feliz puramente apenas por ter aquilo em mãos e poder esquecer um pouco da vida lá fora. No final de tudo eu sem dúvida saí transformado pela experiência, como quem faz uma viagem extraordinária ou passa por eventos marcantes na vida. Eu nunca fui capaz de escolher apenas um jogo como favorito, eu nunca escrevi uma análise antes (mesmo tendo games e escrita como paixões), eu nunca fiz uma tatuagem, mas agora estou planejando uma; tudo mudou agora, esse é o poder da arte, é por isso que eu amo videogames. Obrigado Rockstar games.
O texto é longo, eu sei, e se você leu tudo até aqui eu agradeço e espero que você goste tanto do game como eu.
Obs: As Screenshots foram todas tiradas por mim num Ps4 base.
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